segunda-feira, 1 de setembro de 2014

João e Maria, Parte 2: João

Ela chegaria naquele domingo. Uma semana antes do domingo em que a passagem de João estava marcada. Ele soube disso no momento em que se aplicou para transferência, mas o fez assim mesmo. Não sabia se ela voltaria de fato, não se falavam há meses. Sabia que seu tempo estava expirando, ela teria que voltar de licença no começo do mês seguinte. Isso se decidisse voltar. Ele espiava o perfil dela mais para saber notícias, para ver fotos. Saber por onde ela andava, se as aulas de dança estavam boas, se a cidade estava boa. Ela parecia feliz, se adaptou bem, fez amigos. Não duvidava que ela se sentisse só, mas Maria parecia gostar da solidão. Era o que ela contava há um ano atrás, ao menos, poderia ter mudado durante esse ano inteiro. Mas aquela característica parecia perene: ela era sozinha. Talvez fosse isso que João gostasse nela, a sensação de que mesmo com ele ao lado, ela podia se manter em silêncio em seu próprio mundo. Contando suas próprias histórias a si mesma, sua solidão não era necessariamente um momento de calma. Ela pensava alto. Refletia. Não via a hora de ver de novo os pensamentos borbulhando daquela cabeça inquieta, daquela garota intrigante com sorriso apertado no canto da boca, cheia de malícias. Queria conhecê-las todas. Mas as memórias de Maria ficaram embaçadas com o passar dos meses. Ele pesquisou na internet qual o tempo mínimo para se estabelecer uma ligação que durasse tempo suficiente na memória. Queria saber, na verdade, quanto tempo uma semana em sua vida conseguiria perdurar. Mais de um ano? Em quanto tempo se esqueceria daquela semana? Não soube formular direito a pergunta e o google não o levou a lugar nenhum. Teve de bater uma punheta antes de dormir e acordar para aquela segunda-feira, desejando mais que tudo que ela estivesse sentada naquele banco em frente o prédio em que os dois trabalhavam. 

Agradeceu aos deuses - ou a satã, quem sabe - quando a viu sentada no banco na manhã seguinte. Percebeu que o tempo tinha passado rápido. Aquele ano voou. Era quase um dejá-vu olha-lha naquele mesmo lugar. Distraída como era, não percebeu quando ele se aproximou. Gostava de jogar com aquela carta, brincar com a divagação dela. Mas quase não acreditou quando conseguiu fitá-la nos olhos. Era muita fantasia para uma pessoa só. Ela continuava familiar. Ia acender um cigarro quando percebeu sua presença e ficou parada um instante quando os olhos se encontraram. “Chegou”, ele pensou. Quis beijá-la loucamente. Na sua cabeça fantasiou os dois pelados na frente daquele prédio comercial, se agarrando e transando feito animais, mas se conteve em dizer que não esperava vê-la. Grande mentira. Deslavada, das piores. Queria vê-la, planejava vê-la, faria de tudo para vê-la, mas ela quebrou o silêncio com a história da barba e ele só conseguiu pensar naquilo para dizer. Manteve a pose na conversa e  decidiram passear depois do trabalho, ele esperaria por ela no portão do outro lado. Dessa vez não tinha pressa, nem esposa, nem meias palavras. Agora podiam e deviam, por mais que não fosse durar muito, ele sabia. Mas queria saber o que poderia sair do que nunca saiu. Do que demorou um ano para acontecer - e olha que oportuno - ainda estava aceso como se nunca tivesse se apagado. 

Depois do trabalho esperou por ela sentado no banco deles. Tinham tomado posse daquele pedaço. Mantiveram a descrição na entrada e na saída, mas assim que se afastaram do prédio em que trabalhavam começaram a se tocar sem parar. As conversas morreram naquele desespero de sentir logo o roçar das carnes. João ficou feliz por ter sido intuitivo e recíproco, instantâneo, natural, e de novo familiar. Um milhão de outras palavras que podiam descrever esses fenômenos que acontecem sem precedentes e se tornam enormes. João dançava uma música nos quadris de Maria. Ela cantava ao pé de seu ouvido qualquer verso inspirado em qualquer coisa, talvez fosse só a criatividade do momento, ou o divagar próprio dela. Ele gostava da prosa. Os beijos incessantes também eram reflexo dessa querência desenfreada. Os dois se agarraram no banco da quadra, no caminho da parada de ônibus, na viagem inteira até a casa de João. Tudo que ela dizia soava engraçado e um pouco melancólico, talvez pelo baseado do caminho ou pelo vinho no colchão. Eles riam de bobeira, partilhando aquele momento lindo. Era lindo sem querer. Se entregavam totalmente a cada silêncio e a cada olhar. Não era paixão, era outra coisa. Outro tipo de conexão, além terra, além alma, além coisas. Era o inexplicável acontecendo diante dos olhos e provando que foda-se. Ela estaria lá, nenhuma vida é tão curta. Algumas são, mas aquilo não acabaria. Se mudaria, é verdade. Tinha sido a vez dela, agora talvez fosse a sua. 

Maria e sua cama se deram bem a semana toda. Queria poder desenha-la, até ameaçou uns rabiscos enquanto a observava cochilar nua, toda esparramada na quinta-feira. Ela era pequena, mas podia ocupar uma king size com facilidade, se deitava diagonalmente e estava sempre rolando, até quando dormia. As vezes João rolava com ela e ficavam minutos indo de um lado pro outro da cama rolando um por cima do outro. Não se sentia tão vivo como se sentia ao lado dela havia muito tempo. As interações do ano passado tinham sido superficiais em sua maioria, como para atender necessidades básicas. Não conseguiu se afeiçoar a ninguém depois que Joana foi embora e vez em quando pensava nela também. No fundo das esperanças, ainda aguardava o retorno de Maria. Queria ela de volta para resolver aquela pendência de doze meses e quando ela finalmente chegou, ele quase não podia acreditar. A história da transferência foi quase um ato de rebeldia, por mais que a oportunidade lhe fosse muito promissora. Não podia dizer não, e não disse, iria. Se pudesse levá-la com ele, se ela quisesse ir junto… 

“Você não seria tão egoísta a ponto de pedir isso”, foi o que ela disse quase em tom de piada. Depois ainda gozou da idéia de os dois morarem juntos no Rio de Janeiro e virarem um casal qualquer, entediados com a conta de aluguel e com a chatice que a vida teria se tornado. Falava isso com um riso no canto da boca que denunciava seu sarcasmo. “Pelo menos estaríamos na praia”, ele tentou argumentar. Ela pareceu não ter ouvido. “E depois de aproximadamente um ano e meio - dois, se tivermos sorte - a gente já vai ter se ferido o suficiente para você se apaixonar pela primeira próxima garota que aparecer fumando um cigarro”. Maria montou a situação tão rápida e implacavelmente que quase não houve discussão, era um “não” muito categórico para ser ignorado. Seria assim, ela não iria. Parecia que eles nunca poderiam ter uma relação tradicional, nunca seria fácil. Deixou pra lá com o coração um pouco partido. Ele voltaria pra Brasília de quando em quando. E também não era muito longe, talvez ele conseguisse convencê-la de visitá-lo mais pra frente.

Ligou para Joana enquanto Maria dormia, para se despedir. Queria na verdade dar um alô para Téo e saber como andavam. Eles conseguiram manter uma amizade depois do término e João sempre gostou muito de seu ex-afilhado. Joana nunca soube da história com Maria - ela teve seu tempo para terminar o relacionamento por seus próprios motivos -  e João também não amargurava. Eram parceiros acima de tudo, e ele acabava contando muitas de suas histórias juntos para Maria. Agora sentia que podia falar de Maria para Joana também. Ela já estava de pé naquele domingo quando atendeu o telefone. Tinha andado de bicicleta com Téo no eixão, os dois estavam bem. Perguntou a hora que ele iria para o aeroporto e até ofereceu uma carona por educação que João, por educação, agradeceu e negou. Quando ele falou que conheceu uma pessoa, ela pareceu se interessar mais pela conversa. Perguntou quem era, de onde, como e quando. Maria, do trabalho. A conheci fumando um cigarro na porta do prédio, caminhamos juntos depois. “Como assim, caminhamos?”, ele sabia que aquilo parecia estúpido. Mas era isso mesmo. “A gente anda por aí conversando e de repente viemos parar aqui em casa algumas vezes essa semana”. Joana pediu um segundo, Téo queria falar com ele. Ele conversou com o garoto, um pouco confuso da revelação que tinha feito. Teria falado demais? Quis saber das aulas de futebol e do colégio. Téo falou tudo com pressa e no final ensaiou um “Boa viagem, tio, juízo”. Joana retornou ao telefone e perguntou se era algo sério que estava tendo com Maria. Ele não soube dizer. Não era sério, era intenso. “Uuuuh”, Joana parecia conversar com suas amigas de colégio, levando tudo no tom da fofoca. Isso irritou um pouco João. Joana era a segunda mulher consecutiva que fazia piada quando ele tentava falar sério. Perguntou o que devia fazer. “Ah, poxa, você vai pro Rio. Ou você fica lá e volta ou ela vai pra lá e fica com você. Ou cada um fica num canto. Junto ou separado”. Ela havia falado absolutamente todas as alternativas possíveis. “Mas qual delas eu devo tentar?”, João já estava agoniado. “Qualquer uma. Não é só o que você escolhe. Tem que ser o que vocês dois escolherem juntos. A sua parte mais a parte dela. Que vai resultar em uma outra coisa, que não é nem inteiramente o que você quer, nem ela. É que nem um filho”. João não entendeu o que ela quis dizer e se despediu. O que um filho tinha a ver com o assunto ele não conseguiu compreender, e tentou esquecer dessa parte da conversa. 

Não é como se ele não quisesse ser romântico, ou expressar tudo que queria dizer de fato. Mas algo naquilo parecia um pouco inadequado quando se tratava de Maria. Ela não parecia topar ser sua namorada da forma que ele esperava. Sabia que havia romance e envolvimento em todos aqueles encontros, por mais que parecessem casuais. Não é como se ela casualmente fosse parar em sua cama todos os dias daquela semana, tinha algo que movia aquele presença. Mas não saberia definir, não conseguiria falar sobre isso nos termos deles. Aquela velha de história de falar do geral aplicável a situação em que eles se encontravam, mas nunca a própria situação. Não usavam nomes ou se incluíam nessa gama de histórias, eles falavam deles sem se preocupar muito com a já adquirida relevância um do outro. Não era um assunto, nada que se discutisse. Já havia tentado tocar no ponto “nós dois”, mas foi logo rodeado por Maria e preferiu assim. Era como se o presente fosse tão marcante, que não haveria espaço para aquela conversa. O futuro era só depois. Depois que ele fosse embora, claramente. Depois que aquele beijo terminasse, depois que ele extraísse a última gota de suor que conseguisse daquele corpo moreno que se retorcia como uma felina em sua cama. 

O Rio de Janeiro era muito barulhento. E mesmo distante da orla, o mar também era fonte inesgotável de sons. O centro calorento então, parecia rebater o barulho das conversas das pessoas na rua apinhada de gente. O ônibus estava lotado como de costume e João tentava se manter acordado naquele calor sufocante de meio dia. Sem querer pensou em Maria e em seu sumiço. Desaparecera no momento em que ele se despediu em frente ao salão de embarque. E nunca mais deu notícia. Tinha desativado a conta no facebook e nunca atendera as suas ligações. Tentou ligar de outros números (para saber se era pessoal) mas mesmo assim, nenhum sinal. Já havia cansado de pensar o que poderia ter causado esse sumiço de tantos meses, chegou a cogitar se ela havia morrido. A viu por toda cidade, em rostos e corpos diferentes, mas que se assemelhavam - a imagem de Maria foi ficando embaçada com o tempo. 


Naquele mesmo dia, como na força do pensamento, João teve certeza que a viu. No seu bar habitual na Lapa, próximo ao prédio em que trabalhava e frequentava quase toda quinta e sexta-feira, lá estava Maria, sentada em uma mesa com duas outras garotas. Ele não duvidava que aquela era a real Maria entre todas as outras que tinha visto desde então, não importava quantas cervejas tivesse bebido. E de fato era. Não notara sua presença antes, esteve de costas para aquela mesa o tempo inteiro. Ela apareceu sorrateiramente. Os olhos encontraram de jeito que não dava para negar: eles se conheciam. Dessa vez ele foi pego de surpresa, e não teve muita reação. Ficou a observar Maria se levantar da mesa e vir na direção dele olhando em seus olhos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

João e Maria, Parte 2: Maria

Faltavam dois dias para o visto americano vencer. Teria que voltar ao Brasil, o sonho havia acabado. As passagens estavam compradas, não poderia fugir, teria que voltar. Tudo havia acontecido tão rápido que podia jurar que aquele ano tinha sido apenas um mês. Não queria voltar, tinha finalmente começado a se sentir em casa. Nova York é um ótima cidade para os solitários de coração. Todas as pessoas que atravessam a Union Avenue no meio da tarde parecem extremamente solitárias, todos os dias carregando seus copos de plástico e canudos coloridos de café misturado com todos os açúcares possíveis. Tapioca vinha na forma de goma preta em chás de coco de 500ml nos quiosques vietnamitas. A solidão estava por todos os lados. Por isso talvez as pessoas gostassem tanto de trabalhar em Nova York. “Tudo isso é pra não ficar sozinho”, Maria pensou certa vez ao observar a diretora do Instituto de Dança correr para todos os lados em seu escritório, afoita em mostrar uma foto da época em que era solista do Bolshoi. Susan passava mais de doze horas na academia. Maria sabia que ela tinha filhos e marido, mas não imaginava como um casamento poderia funcionar com uma das partes passando doze horas, seis dias por semana, fazendo outra coisa. Ela passou a se sentir em casa. Gostava de sentir a sensação de ser apenas mais uma porca no meio das engrenagens, uma formiguinha do formigueiro, mais uma trabalhadora da colmeia. Gostava dessa sensação de união da cidade, de coisas que só aconteciam lá. De um milhão de pessoas, ou mais, nem sabia quantas, mas sabia que era todo o tipo de coisa. Maria viu o tempo passar no metrô. Na linha G, que roda o Brooklyn, mas transferindo de outra linha de Manhattan a noite demora… Demora… Demora tanto que quando cansada só saia pelo Brooklyn. Ou dormiria no meio de alguma praça. Dormiu em algumas e se gaba por num ter tido nada roubado - o celular ainda era o mesmo -  mas sabe que foi apenas sorte. 

Era uma coisa maluca ter vivido tudo aquilo. Sentiu saudade de certas pessoas como se o tempo durasse uma vida para passar, mas não teve tempo de fazer várias coisas que queria ter feito. Nova York a acolheu de braços abertos e chutou sua bunda ao mesmo tempo. E era isso que ela queria, precisava testar outra coisa, agir em outra lógica, experimentar outros modelos. Maria sentia que tinha se transformado em outra pessoa, talvez esse tivesse sido o propósito da idéia toda. Mudar tudo de uma vez. Ela sabia que no momento em que entrasse naquele avião de ida, várias coisas parariam de fazer sentido. Mas aquele tudo de outra hora já havia passado, diziam que o tempo curava e ele curou. Fechou uma ou outra ferida e abriu outras tantas. E cutucou sem dó, mostrou tudinho estatelado no meio da cara dela. Foram tempos difíceis. O alojamento apertado com a companheira de quarto espaçosa disfarçavam um pouco a solidão onipresente. A multidão e os barulhos que nunca calavam adentraram Maria, a colocando na mesma freqüência da cidade. Aprendeu a viver daquela forma, se adaptou. Mas se sentia forte novamente. Tinha se convencido de que voltar para o Brasil seria uma mudança necessária, precisava resolver coisas por lá também. Não tinha mais dinheiro para ficar e nem queria tanto. Tinha dado, esgotou. Precisava do silêncio de Brasília mais do nunca. 

Chegou no prédio do antigo emprego sentindo um dejá-vu.”Tá tudo igual”, foi o que ela conseguiu pensar quando sentou no banco de sempre. Provavelmente veria uma equipe quase toda renovada quando chegasse em seu setor. Talvez conhecesse gente nova. Quem sabe teriam consertado a copiadora do andar de baixo, e a Odete tenha sido finalmente transferida para o RH. Esse tipo de coisa que se resolve em um ano. Na noite anterior havia encontrado os amigos, que fizeram uma pequena reunião para recebê-la de volta no novo apartamento de Glu. Ele já havia mudado há meses, mas como Maria ainda não conhecia o lugar - “Essa foi a grande mudança que aconteceu nas nossas vidas enquanto eu estive fora?” - resolveram marcar o reencontro lá. Ele estava morando agora com a amiga Marta, com quem Maria nunca se deu muito bem, mas conversou amigavelmente durante boa parte da noite anterior. Conheceu o novo namorado de Rita, bebeu catuaba depois do jejum de um ano. A noite havia sido boa. Estava com estômago um pouco ácido, mas fumava um cigarro mesmo assim. Era o costume, antes do trabalho. Também era costume que João aparecesse de surpresa e Maria reparou sua presença no momento em que levava o cigarro aos lábios, parando o movimento na metade. 

Lá estava ele, um ano mais velho. Bonito do mesmo jeito, com a barba um pouco mais cheia. Maria tinha esquecido que aquele ponto era perigoso, aquele banco. Chegou no trabalho esquecida de João, havia pensado nele na noite passada na casa de Glu, mas afastou a lembrança para não ficar neurótica. Se pensasse nele ficaria nervosa. Os dois pararam de se comunicar quando ele disse ter terminado o casamento, quase em acordo. Maria não o procurou, pensou que ele podia estar vivendo a vida de solteiro pegador e não quis atrapalhá-lo com suas histórias. Ele também deu seu tempo e há onze meses eles sequer tinham curtido um mísero post no facebook um do outro. Foi um longo silêncio quebrado com a aparição repentina, marca registrada de João. “Ele chega silencioso como um gato”, Maria pensou, ainda com o cigarro na metade do caminho, se detestando um pouco por não ter percebido a chegada dele. Estava ao seu lado, sentado no mesmo banco em que se conheceram, novamente em silêncio. Eles se olharam por um momento e ela tomou coragem para fumar o cigarro. Soltou a fumaça e João continuou calado olhando para ela. “Gostei da barba”, ela disse finalmente. Ele agradeceu e continuou a fitando. “Achei que nunca voltaria”, ele disse olhando para o chão. Maria não sabia o que dizer. Ela não conseguia ler no seu rosto nada que dissesse que ele estava feliz de encontrá-la de novo. “Você queria que eu voltasse?”, ela falou de supetão. Se arrependeu em seguida, mas João respondeu rápido. “Queria, mas logo agora?”. Maria não entendia. “Logo agora o quê?”. Ele suspirou. “Abriu uma vaga nas transferências e eu consegui a minha para o Rio”. 

Maria acordou ao amanhecer. Tinha ido conhecer a casa de João depois do trabalho e beberam vinho o suficiente para capotarem na cama depois de quase duas horas de sexo. Ela acendeu um cigarro na janela, sentada sem roupa em uma cadeira de balanço. “Demorou”, ela pensou. Observava João roncar levemente, enquanto recordava da noite anterior. Saíram do trabalho juntos e andaram até a quadra em que se viram pela última vez para fumar um baseado. Ele contou que se mudaria de cidade em uma semana. Só podia ser um karma. Depois que terminou o casamento ficou sozinho, conheceu umas garotas, paquerou e chegou a se encontrar com algumas delas mais de uma vez. Dizia que pensava em Maria quase sempre, mas que havia desistido. Era muito tempo até que eles pudessem se ver de novo e ele tinha que tentar aquela vaga no Rio. Maria não estava contando com o beijo que veio inesperado, no meio da frase e a calou. Podia ter durado um segundo ou uma vida, ela não saberia dizer. Se afogou nos lábios de João com tanta intensidade que não era capaz de lembrar da viagem de ônibus até a casa dele. Não conseguiu olhar pela janela do tanto que eles se beijavam. 

Se acalmaram ao chegar no quintal e passaram a noite a observar estrelas em um colchão improvisado que João montou na grama. As duas garrafas de vinho acabaram por volta da meia-noite e a partir desse horário, as peças de roupa foram sumindo magicamente até não sobrar mais nem as meias. Entraram para o quarto e Maria se lembra de gozar duas vezes. A sensação da alma despregando do corpo aconteceu tão naturalmente que seus corpos pareciam se conhecer de outras vidas. Ela suspirou lembrando da cara de felicidade de João quando ela ficou completamente nua, os dois se divertiram como crianças em um parque de diversão. Compartilhavam uma curiosidade com o corpo do outro que se tocavam apenas por tocar, pelo prazer de sentir a pele alheia. Precisavam estar dentro um do outro o mais rápido possível. 

Rita não acreditava que eles tinham se encontrado de novo tão rápido. “Ele trabalha no mesmo lugar que eu”, é claro que ela não se lembrava. Lembrava apenas da parte em que João era casado, mesmo que Maria insistisse que ele já havia se separado há quase um ano. E agora esse outro problema de ele ir embora. “Não poderia dar certo, essas coisas acontecem para prevenir a gente de coisas piores”, que chatice. Rita podia ser desagradavelmente pessimista certas vezes. Maria suspeitava que ela estava tendo problemas com o novo namorado, qual era o nome dele mesmo? Pedro? Rafael? Pedro. Se lembrou de Rita e o… Marcos? Paulo? se atacando passivamente na casa de Glu. Rita estava monotemática sobre sua apresentação de teatro que Pedro (ou Rafael?) não pôde comparecer. O azedume na voz dela era tão óbvio pelo telefone que Maria suspeitava que nem precisaria ter que aprender o nome do rapaz, ele não duraria muito tempo. Mas Maria e João ainda teriam uma semana… Rita insistia pra que ela não se apaixonasse. “Não é algo controlável”, Maria sabia que já estava feito. Tinha se apaixonado há um ano atrás, quando encontrou João sentado ao seu lado pela primeira vez, quase instantaneamente. E agora a história se repetiu. 

Felizmente aquela semana pareceu ter durado uma eternidade. João iria embora no domingo e desde aquela segunda-feira os dois dormiram juntos todas as noites. A mãe de Maria estava preocupada, a filha mal havia chegado de uma viagem de um ano e elas tinham se encontrado uma vez, no aeroporto quando ela chegou. Maria tinha prometido dormir na casa da mãe, mas depois explicou. Havia conhecido uma pessoa e só teriam essa semana, “ai ai, Maria. E depois?”. “Depois eu te conto, deixa essa semana passar”. E passou. Todo dia uma aventura nova e uma rotina que Maria adorava. Se encontravam na entrada e na saída do trabalho e passeavam pela cidade até que fossem parar na cama de João. E lá eles gastavam horas. Conversavam semi-nus enquanto fumavam um baseado, enquanto ouviam Led Zeppelin na vitrola (Maria sempre colocava a agulha do meio pro final de Stairway to heaven: “O começo é chato”), conversavam enquanto tomavam banho na banheira até a água ficar fria. Falavam tanto de amor que não sabiam se estavam falando deles próprios ou da vida em geral. Talvez estivessem falando dos dois. 

No aeroporto, o clima despedida fez Maria chorar no banheiro ao lado da sala de embarque. Não queria que ele fosse, não era justo. Não queria fraquejar na frente dele, também, não tinham conversado como seria dali para frente. Os dois fizeram o possível para evitar o assunto até aquele momento, com a desculpa que perderiam o tempo presente juntos se ficassem focados no futuro. Mas o presente tinha acabado e tudo o que tinha agora era o arrepio na nuca que já sentia saudades. O beijo da despedida foi como o primeiro, impossível determinar quanto tempo durou, mas ainda assim foi pouco. “Podia ter durado mais”, Maria pensou voltando para casa. Dormiria em sua cama pela primeira vez desde que tinha voltado e aquilo lhe pareceu muito solitário. 



terça-feira, 26 de agosto de 2014

João e Maria, Parte 1: João

A sensação de aperto do ônibus parecia refletir o estado de espírito de João naquela segunda-feira. Ele segurava com mais força o apoio de mão, balançando a cada freada, pensando que finalmente começaria naquele emprego e sairia da condição de ser sustentado pela mulher. Joana já estava angustiada com a sucessão de dias que João passava no sofá e no video-game. Estava infeliz, desempregado, desacreditado. Ele entendia o peso que estava se tornando na vida de sua companheira, mas por muito tempo foi difícil dar esse passo importante que é o de começar, de fato, a fazer as coisas. O emprego veio em boa hora, João acreditava que caso demorasse um pouco mais ele talvez teria sido engolido pelo sofá ou se transformado em um atirador de Counter Strike. Estava começando a sonhar com as estratégias para combater terroristas, comprando armas que variavam de calibre com o poder de sua ira. O rapaz estava perturbado. Pensar nos últimos eventos de seu casamento o fazia se sentir culpado. A senhora gritando ao telefone no ônibus com o filho o fazia se sentir culpado. O pobre do rapaz só havia perdido a parada de ônibus, João pensou, teria que fazer um retorno, não era grande coisa. Mas a ira da senhora o fez sentir-se responsável. Como se de alguma forma João fosse cúmplice da ignorância do filho da senhora.

As noites em seu quarto eram acompanhadas, mas sempre solitárias. O pornô era absolutamente proibido em sua casa, e mesmo assim, Joana não parecia muito interessada em sexo recentemente. Não com ele. Todas as últimas iniciativas de João de inovar ou prolongar o ato foram repreendidas não-verbalmente. Ele entendia, não estava colaborando para felicidade de ninguém, mas gostaria de ter essa opção. De simplesmente não ter a obrigação de produzir ou ser responsável pela felicidade de ninguém. Ele nem ao menos era capaz de fazer isso a ele próprio. Não estava nessa condição e não sentia que conseguiria devolver a seriedade que a relação exigia. Pensou no pai, no avô, em todos os outros homens desistentes da família. Todos aqueles que disseram adeus sem nunca mais voltar ou simplesmente dar uma explicação pela partida. Não queria ser isso, não podia. Prometeu fazer diferente se comprometeu com Joana e agora, quase três anos depois se via em dúvida. Era como se estivesse no piloto automático. Tinha controle parcial do que fazia, mas estava dependente. Talvez agora com esse emprego novo… Cumpriria horário, se vestiria adequadamente, daria um tempo para que Joana também aproveitasse a sós a casa e sua própria vida. As coisas mudariam.
         
Não tinha começado bem, tinha pego o ônibus errado, viajou. Não sabia se chegaria ao centro tão rápido. Podia se atrasar uns cinco minutos, talvez não fizesse mal. João reparou uma garota sentada a frente. Ela parecia hipnotizada ao olhar pela janela. Tinha um cabelo liso comprido e a pele morena. Parecia uma figura curiosa. Havia algo diferente, peculiar nela. Algo de novo, uma onda. Ela deve fumar maconha, ele pensou alto. Desceu do ônibus ainda intrigado com a garota da frente, que não se abalou quando o ônibus parou, nem fez menção de descer. Ela estava em outro lugar. 

João parou para comprar água de um camelô e enquanto aguardava o troco, observou a garota estranha passar. Ela estava indo pelo mesmo caminho que o seu. Enrolou para continuar andando, tentando pensar o que fazer. Ela não o reparara, mas ele se sentia diferente em sua presença. Quando passou fez João ter o impulso de dizer olá, mas ele cedo percebeu que pareceria estranho e se recatou no seu quase movimento. Eles não se conheciam. Quando chegou ao edifício do novo emprego avistou a garota sentada em um banco grande. Ela segurava um livro de cabeceira que João há tempos havia emprestado para Tito, o amigo que nunca o devolvera. Ela acendia um cigarro, e ele achou que eram muitas coincidências para não tomar uma atitude a respeito. Haviam pego o mesmo ônibus e aparentemente trabalhavam no mesmo lugar. Ela fumava e lia o livro de cabeceira dele. João sentou ao seu lado e ela se assustou. O sorriso era grande, largo. João se perguntava porque ela parecia tão esquisita, tão de outro mundo, tão parecida com ele. Seu rosto era quase familiar. A conversa não pôde se alongar o quanto ele gostaria e ela logo fez menção de entrar no edifício. Já trabalhava lá há um ano, estaria saindo de licença, voltaria no ano seguinte. Muitas informações de uma vez. Ela era nervosa, falava rápido, engolindo as idéias, mas João sentia que o seu ritmo de fala acalmava a garota. Com o passar da conversa a fala dela foi se alongando, as pausas também. Como um blues que desacelera. Maria. Maria. Maria. Maria. Maria… ele pensou tantas vezes que o nome parou de fazer sentido. 


Chegou em casa se sentindo culpado. Aquele sentimento havia virado seu melhor amigo de tanto o acompanhar. A culpa acordava com ele, tomavam café juntos, daquela semana em diante também iria trabalhar ao seu lado. Acompanhar João na volta para casa, no banco ao lado do ônibus. Parecia que nada que fizesse estaria desrelacionado do peso nos ombros e da consciência que gritava a cada incoerência. Não sabia o que fazer, não era como se pudesse confessar a alguém sobre algo, porque não havia algo. Mas sabia que aquilo queria dizer uma porção de outras inferências. “Por que essa amizade repetina?” alguns poderiam perguntar. Sua mulher poderia perguntar isso ou mil outras coisas semelhantes e mesmo que ele respondesse a todas, ainda teria que contar com a boa vontade de Joana em acreditar em sua confissão. E mesmo que acreditasse, o que faria depois? O que poderia existir para um relacionamento depois da frase: “conheci outra pessoa”?. E mesmo assim, não houve traição, nada foi feito. Pela primeira vez na vida poderia jurar de pés juntos que jamais encostou um dedo naquela garota. O que não mudava suas intenções, pois tudo em que ele pensava recentemente era em tocar Maria. E mesmo que ele decidisse acabar o relacionamento com Joana, o que faria? Maria estaria dentro do avião antes que tivesse coragem de iniciar a conversa do término.

João tentou desenhar um esboço de suas emoções na noite de quarta-feira. Tinha fumado mais do que o normal. O trabalho estava monótono, como é comum de quase todo início, então ele tinha tempo suficiente para um cigarro ocasional, apenas para rondar. Conseguiu conciliar sua vontade com a de Maria, e os dois entravam no mesmo ritmo de horário fumante. A cada uma hora e meia, ou duas horas passadas, era o momento da pausa. Se ele fosse ao banheiro, poderia levar um cigarro no bolso da camisa, caso ela estivesse lá fora. E se estivesse, maravilha. Eles não falavam por muito tempo, mas era tempo o suficiente para gostar de estar ao lado dela. A garota se enfurecia e indagava tudo com tanta dúvida e coerência em suas perguntas - ele pensava a observando enquanto caminhavam em uma noite de lua fina - em direção aquela bendita parada de ônibus, que naquela mesma semana havia virado um ponto de encontro, um caminho acompanhado e presente. João se hipnotizava pelas histórias que ela contava, e como reagia as suas. Ela muito recentemente tinha sentido coisas parecidas com que ele sentia agora. Ela fugia de alguém, do ex, da imagem do ex, da projeção do ex, da história com ex. O cara parecia um estúpido, mas era ela que reforçava sua própria estupidez por não ter coragem de ter terminado antes. Dizia que seu coração se partiu por amar demais. Tinha se esquecido de si mesma, se entregado por completo a um ideal romântico que nada tinha a ver com sua realidade ao redor. E de fato, ela parecia extasiada com a compreensão de si mesma. João tentou se lembrar de si mesmo, mas tudo que viu foi um amigo antigo, alguém com quem não encontrava há anos. João e Joana era outra coisa, era o que sobrou. Mas João, sozinho, não era encontrado há muito tempo.

Teve de lhe contar tudo na quinta-feira. Joana, a casa, os gatos. Os amigos, os projetos, os desejos frustrados, as dores que nunca curaram, as outras mulheres de sua vida, a vida em geral e como ela fazia ele se sentir. Sentia que podia falar, podia querer. Maria mantivera sua distância, que pareceu esquisita no primeiro momento, mas depois ele compreendeu que era a forma que ela encontrou para não se apegar. João respeitava, também não encostava nela. As despedidas tinham sido todas desastradas, na noite anterior Maria quase perdera o ônibus porque os dois se olhavam em silêncio sem saber como dizer tchau. Talvez se eles se tocassem algo explodiria, alguém morreria ou o eixo da terra mudaria de direção. Um buraco até a China se abriria no chão do setor comercial de Brasília. Era uma mistura de feromônios insuportável, mas foi assim e todos os encontros até aquela quinta-feira haviam sido. Apenas o cheiro e a presença quase metafísica.

João queria lavar a louça antes que Joana chegasse, ou pelo menos estar lavando louça quando ela voltasse da reunião do clube de pais e mestres de Téo, na escola. Com o ex-marido, se ele aparecer. A culpa rondava. Poderia pensar em Maria em silêncio enquanto lavava a louça, ou tentar parar de pensar nela. Sentia que precisava fazer algo, dizer algo, precisava que ela soubesse que aqueles encontros eram importantes. E precisava fazer algo também a respeito de seu casamento. Não estava feliz, sabia. Acreditou que a paixão por Joana nunca diminuísse, planejava passar o resto da vida ao seu lado. Quem sabe teriam um filho para fazer companhia a Téo. Já moravam juntos há muito tempo e há muito tempo pareciam mais acostumados com a relação do que apaixonados por ela. E conhecer outra pessoa é algo que pode acontecer a qualquer um, não é planejado. Certamente não planejou conhecer Maria e suas pernas, mas elas apareceram de qualquer forma e ele logo percebeu o que faltava com Joana. Faltava aquele dialeto que ele e Maria podiam falar tão fluentemente, uma língua universal que faz tudo o que o outro diga os mais bonitos versos recitados. Ele e Maria estavam compartilhando e conversando a língua do amor.

Tinha decidido que daria um beijo nela nesta sexta. Não teria nada a perder. Tinha que fazer algo, tocá-la, senti-la, cheirá-la, tinha de tomar coragem. Pensou no que ela poderia dizer e quantas maneiras diferentes poderia rejeitar seu beijo. Talvez não sentisse a mesma coisa. Talvez ela só esteja em busca de alguém para fazer companhia até a parada de ônibus, pelo gosto de papear. “Ela sabe que sou casado. Sabe que não estou feliz, mas sabe que sou casado.”, ele pensou alto enquanto mastigava feijão com arroz. Teria de beijá-la no começo da noite, depois do expediente e torcer pra que ela não tenha outros planos, ou pegue alguma carona com alguém. Eles poderiam andar por alguma quadra, ele levaria um baseado que tinha prometido. Seria a hora certa, olhando as estrelas do céu sem nuvem daquele inverno seco e frio de Brasília. Sentiu uma vibração no baixo ventre e se recompôs com um arrepio, esticando a coluna. Continuou comendo depois de imaginar os lábios secos da boca bem delineada de Maria. Ela poderia achar a tentativa de beijá-la um ultraje, e ele acabaria com tudo com apenas um único movimento em falso. Mas não deveria fazer diferença, porque mesmo que ela rejeitasse completamente a tentativa ilusória de roubar um beijo, não teriam que se ver na segunda-feira. Ela já estaria longe. Era a última chance em um ano e mesmo assim, não saberia se a encontraria novamente depois que o tempo passasse. Nunca se sabe. Joana perguntou porque ele estava tão avoado durante o almoço e João acordou de seu transe desistindo da idéia de beijar Maria.

Sentados em uma banco de frente a uma pequena praça, João e Maria observavam os carros que estacionavam mais adiante. Eram oito da noite daquela sexta-feira, e as pessoas pareciam estar voltando do trabalho. A quadra estava agitada e eles ainda podiam enxergar o vermelho dos faróis de carro, que passavam quase voando nas pista de 60 quilômetros do eixinho. O vento batia frio e espalhava os finos fios de cabelo de Maria pelo ar. Ela sibilava tentando chamar um gatinho branco e marrom que apareceu entre os arbustos. O gatinho levantou as orelhas e até se aproximou ao ouvir chamado de Maria, mas logo reparou em um casal com um cachorro que vinha andando pela calçada, e voltou a se esconder nas sombras das folhas. “Acho cachorro senso comum”, Maria disse, se esquivando para procurar o gatinho entre as sombras dos arbustos. Ele entendia. Concordava ao observar o grande bulldog arrastar o próprio dono, que segurava com força a coleira ao lado da namorada com roupas de academia. Sentia-se como aquele bulldog. Um grande senso comum, agindo sempre da forma que se esperava dele. Procurou por um momento alguém em sua vida para relacionar com os donos do cachorro, os que mantiveram ele na coleira esse tempo todo. Só soube dizer o nome de Joana. O outro fator que fazia dele um cachorro grosseiro poderia ser o próprio senso de si mesmo. Seu ego, seu ideal pessoal, todas as projeções. Tinha perdido a espontaneidade ao longo do caminho, observava isso nas atitudes tranquilas de Maria. Ela podia guardar todos os segredos, mas estava bem. Era quase um olhar de esperança nas coisas e na vida que ela direcionada até para o pequeno gatinho que não apareceu de volta. Ele não conseguiu beijá-la.

João acordou antes do despertador, com o barulho de Joana fazendo a mudança. No dia anterior ela havia lhe comunicado a decisão de voltar a morar com o ex-marido. Era o pai de Téo, fazia sentido. Ela chorou agradecendo os anos de relacionamento e se dizendo grata a todos os cuidados que ele havia tido com ela e com o filho. Ele a abraçou ainda sonolento e fechou a porta. Fazia um mês que Maria havia ido embora. Mas ela se tornou mais presente com esse passar de mês. As conversas não pararam, se quer diminuíram. João gastou mais do que devia em serviços de internet móvel com velocidade o suficiente para poder se comunicar com Maria em qualquer lugar. Agora poderia contar para ela que estava livre, que não tinha mais um relacionamento. Não é como se isso mudasse alguma coisa, ainda faltavam onze meses para ela voltar.

João e Maria, Parte 1: Maria

A parada de ônibus chegou antes que Maria percebesse. Sentada na janela, fitando o asfalto do outro lado da rua levou um susto quando o ônibus deu partida. Teve de contar com a ajuda de outros passageiros que pediram ao motorista que a esperasse descer. Agradecendo as pessoas apertadas no corredor do Grande Circular, pareceu retornar de seu estado contemplativo quando pisou no chão da parada de ônibus. Ela havia passado o caminho de casa até o trabalho mergulhada em um transe pessoal, sem notar quem subia e descia do ônibus ou mesmo quem sentava ao seu lado. Por um momento se sentiu desconfortável ao lado de uma senhora espaçosa e cheia de sacolas que desceu duas paradas depois, parecendo ter pego o ônibus errado. A senhora falava muito alto ao telefone com o filho e eles pareciam se desentender sobre qual parada de ônibus deveriam se encontrar. Maria simplesmente ouviu o zumbido da argumentação da senhora ao telefone, sem desviar o olhar atormentado da rua que passava na janela. “Não foi falta amor”, dizia sua consciência para o ex-namorado invisível enquanto a senhora ralhava ao lado: “Eu sei que eu falei que era na 102, mas não é!!”. A voz da senhora foi ficando mais baixa enquanto ela e outros passageiros se levantaram para descer do ônibus. Maria continuava: “Mas não era amor bom. Não pode ser. Não é amor ter obrigação de agradar ninguém. Nem a você, seu estúpido.” Foi tempo o suficiente para acordar do sonho do asfalto e voltar a realidade. Tinha de descer do ônibus, tinha de trabalhar, tinha de parar de fitar o asfalto se justificando para aquele rapaz de não tinha simplesmente nada a oferecer a ela. Tinha decidido, iria embora. Tinha chegado o momento de partir, teve que usar da geografia para finalmente dar fim aquela história. Brasília era muito pequena, ele estaria por todos os lados. Ela uniu fome a vontade de comer e aproveitou a oportunidade. Foi aceita no Instituto de Dança e daria aulas por um ano em Nova York. Mas precisava fechar as contas no antigo emprego. “Só mais essa semana”, Maria pensou mordendo o lábio e se aproximando da entrada do edifício em que trabalhava em um órgão do governo.

Sua cabeça turbilhava aos pensamentos, tão inquieta que ela temia que as outras pessoas que caminhavam ao seu redor pudessem ouvir o que pensava. Precisava fumar um cigarro antes de entrar no edifício. Era o que fazia diariamente, ao lado de outros colegas fumantes do trabalho. Sentou no seu banco de sempre e tirou atrapalhada da bolsa uma carteira de cigarros amassada e um isqueiro. Equilibrava “O guia do mochileiros das galáxias” entre as pernas, livro que nem abrira durante o trajeto do ônibus. Pensava em contas a pagar, amigos a despedir, o ex a esquecer, família a traquilizar. Trabalharia até a última sexta-feira para pegar o vôo da meia-noite. Era apenas segunda. O dia não chegava. A viagem já estava marcada, não era como se ela tivesse como fugir. Maria quase não percebeu quando um rapaz sentou-se ao seu lado. Ele também fumava e ela fez esforço para se lembrar de onde o conhecia. Antes que pudesse se recordar, seus olhos se cruzaram e ela sentiu um leve arrepio na nuca. 


Chegou ao setor onde trabalhava estarrecida e pegou um copo d’água antes de abrir a porta. “Ele é novo aqui”, ela pensava enquanto cumprimentava os colegas de trabalho e se sentava na mesa de seu computador. Abriu a página de e-mail corporativo e deslizou rapidamente a caixa de mensagens recebidas sem ler o conteúdo dos assuntos até o final. Abriu o facebook. João Lira. Trinta e oito amigos em comum. Clicou no álbum de fotos “Cachaça e carta” e suspirou passando as imagens de um sítio isolado no topo de uma serra. Parou em uma foto de João entre dois amigos jogando baralho em uma mesa com garrafas e copos de doses. Percebeu os olhos bonitos de João com o mesmo arrepio na nuca. “Tocam profundo os olhos de qualquer outra pessoa”, ela pensou extasiada. Quase não podia acreditar. Tinha gostado dele. A conversa foi rápida, mas com assuntos certeiros. A afinidade era gritante, berrou aos olhos dos outros companheiros de cigarro, com quem Maria não alongou conversa dessa vez. Fechou o álbum e foi analisar o resto do perfil de João. Casado com Joana P. Maria engoliu a seco. Era hora de trabalhar e não podia perder tempo com cara bonito casado do trabalho. Ela iria embora de qualquer jeito, naquela mesma sexta-feira. Estava tão magoada com o término do último namoro que era incapaz de interagir socialmente com um rapaz desconhecido sem acabar em uma discussão. Maria estava tensa, dura, rígida. E também atormentada com a quantidade de mudanças que deveria lidar no próximo ano. Mas se sentiu bem em dois minutos de conversa com João. Era ridículo pensar em seus nomes juntos.

Na terça-feira Maria chegou ao trabalho cinco minutos mais cedo. Ela olhava inquieta para entrada do edifício, ansiosa para que João aparecesse logo. Por algum motivo tinha urgência em vê-lo, mas ainda não sabia o que lhe diria. Não o mencionou para os colegas na noite anterior. Guardou João como um segredo quando Rita, a amiga de longa data, perguntou se ela já havia conhecido alguém. “Ninguém interessante”, respondeu, pensando nos olhos castanho claros de João. Não queria dizer nada para não dar azar. João sentou-se ao seu lado quando ela acendia o segundo cigarro, tentando equilibrar um livro, o maço amassado e as pernas cruzadas. Maria tentava forçosamente ler “O guia do mochileiro das galáxias vol. 2” pela terceira vez, só para matar o tempo antes do horário de entrar no trabalho. E esperar João aparecer. Mas João não era possível. Não daria. Maria tinha certeza de que aquele arrepio na nuca significava perigo. Tinha se sentido da mesma forma quando conheceu o ex-namorado, mas a linda história de amor prometida pelo primeiro encontro - um show lotado em que os amigos em comum finalmente os apresentaram - se transformou em um passado tão palpável que era difícil de acreditar. “Será que já esqueci?”, ela matutava. Pensou que essa sensação podia ter sido causada pela aparição inesperada desse novo trabalhador de um emprego que ela estava prestes a deixar. Iria embora. Sentiu de novo a nuca arrepiada e foi pega de surpresa quando percebeu João sentado ao seu lado. João não disse nada, só acendeu um cigarro quando ela finalmente percebeu que ele estava lá. O amigos fumantes por algum motivo sentavam todos em outro banco e aquele espaço ao seu lado ficou oportunamente vago. Maria deu um “oi” atrapalhado querendo dizer algo mais, mas não sabia. Os dois fumaram em silêncio. De alguma forma aquilo não parecia desconfortável e a mente de Maria cessou de procurar algo a dizer. “Ansiosa”, ele finalmente disse, e Maria não teve certeza se era uma pergunta. “Não só por isso”, ela acabou confessando. Se arrependeu no segundo seguinte. João deu um sorriso e fez que ia chegar mais perto, mas nem chegou tanto assim. “Calma…”, ele falou arrastando a palavra. Maria sabia que não coraria, mas se sentiu corada. “É muita mudança de uma vez. Uma grande fuga de um ano. Vou pra Nova York, mas volto”. Era como se ele a compreendesse por completo, talvez fosse algo no olhar. “E é a segunda vez que converso com ele”, ela pensou enquanto o observava tragar o cigarro. Era lindo. Ela não podia crer.

Maria esmagou uma semente no meio da calçada, quando ela e João caminhavam até a parada de ônibus na noite daquela terça-feira. Ela gostou de ouvir o barulho das cascas quebrando, sempre gostou de pisar em cascas crocantes, com as folhas duras e os pequenos grãos espalhados. Não sabia exatamente que tipo de árvore era, mas as via em todo lugar em Brasília. O barulho da folha dura quebrando era um prazer. Depois de passar o êxtase do som de cascas pisadas, João perguntou porque ela havia matado a semente. “Era pra ouvir. Eu nunca pensei que estaria matando a semente”. Ela riu desconcertada, mas instintivamente mirou outra casca de semente enquanto caminhava. “O som é bom mesmo”, disse João, mas não pisou em várias cascas que atravessavam seu caminho.

Na quarta-feira a noite Maria contou para Rita sobre João. Era inevitável. Já tinha contado a irmã, teria que contar para Rita. Foram dois fins de expediente seguidos, depois daquele primeiro encontro. Dois dias seguidos na mesma semana, aquela última semana. Não foi nada, é claro que não foi nada. Os dois só caminharam até a parada de ônibus, se encontravam durante os cigarros nos intervalos. Falaram de muita coisa, é claro, mas ela iria embora. Eram dois dias. Ele era casado. “Não daria, não agora.”, foi o que Rita disse ao telefone, enquanto Maria separava roupas em cima da cama, com a mala aberta ao lado. “É bom pra você realmente esquecer o ex, afrouxar a cabeça. Relaxar paquerando, pra você já entrar no espírito em Nova York”. Maria não se decidia entre dois shorts jeans que levaria como quarto short jeans. Fez um “unidunitê” e o sorvete colorido foi o short jeans escuro de cintura alta. Afastou a pilha de shorts jeans e sentou na cama. “E não é como se a gente estivesse fazendo algo. Foi só caminhada até o ponto de ônibus e cigarro. Um monte de cigarro”. Maria colocou no vivavoz e a voz de Rita soou alto pelo quarto. “Mas e os beijinhos da despedida?”. “Não houve”, Maria refletiu. Não se tocaram. Nunca se cumprimentaram, nem aperto de mão, abracinho, beijinho, nada. “Fala a verdade”, Rita não acreditaria. “A gente nunca se tocou”, Maria também não acreditava.

Quinta-feira chegou quente, ensolarada, mas com o vento frio do inverno de Brasília. No sol faz calor, na sombra é gelado. Maria havia resolvido pendências de viagem, organizado os documentos, decidido entre shorts jeans. Se sentia produtiva, viva. Estava em clima de nostalgia no trabalho, com os futuros ex-colegas. Festinhas, adeuses, era uma forma alegre de celebrar mudanças. Se sentia segura e ao mesmo tempo amedrontada em pensar no futuro, mas era gostoso. Havia eliminado boa parte da tensão dos ombros, apesar de estar fumando mais. Era ocasional, era por causa dele. Era uma desculpa, mas ao menos uma desculpa adequada, coerente. As conversas com João tinham ficado cada vez mais pessoais, mais intensas. Maria já havia contado sobre vários de seus ex-relacionamentos e dramas anteriores. Eles dividiam angústias e questionamentos. Os dois se perguntavam o que de fato minava o amor e a cumplicidade entre duas pessoas. Por que os padrões de homem-mulher, namorado-namorada, marido-esposa, estavam sempre acabando em divórcio-separação e por que ao mesmo tempo nos obrigamos a nos manter infelizes em relações desgastadas e sufocantes. Ela tinha se livrado de uma relação obsessiva depois de muito insistir e ele se mantinha em uma, querendo acreditar que alguma outra solução seria possível. Ela prontamente insistiu para que ele não desistisse. Que acreditasse um pouco, que tentasse de todas as formas. João não entendeu. Pareceu confuso, como quem ouve pela primeira vez o mesmo objeto ser chamado por um nome diferente. 


Aquela maldita e bendita sexta-feira. O vôo sairia a meia-noite, ela trabalharia até as oito, teria que voltar pra casa no máximo as nove e meia. Uma hora e meia para gastar conversa com João. A última, em um ano. Depois do trabalho sentaram em um banco de uma quadra, fumaram um cigarro acendendo o seguinte. Foi a forma de celebrar a última noite. Antes eles apenas seguiriam para parada de ônibus e torceriam para que ônibus demorasse. Mas aquela noite resolveram sentar no caminho, dar um tempo, ficar um pouco mais. Tudo isso foi acordado de forma casual, como se aquela fosse mais uma sexta-feira entre outras tantas, mas sabiam que era um adeus. Falaram da vida para não terem de se encarar, de pessoas que conheciam em comum, de passeios anteriores. Maria pode reparar a nuca comprida de João e sentiu um arrepio na sua. Queria olhar mais de perto para poder contar as pintas que subiam o pescoço dele. Se despediram sem se tocar, mas com um olhar tão fulminante que poderia sugerir todas coisas do mundo. Era um convite para aventura, mas nenhum dos dois sabia exatamente que tipo de aventura seria essa. Podia ser o início de uma paixão, ou uma grande amizade. Alguma conexão, que poderia ser restabelecida em algum momento, talvez até fisicamente. Aquela falta de contato físico fazia Maria duvidar da existência de João. Poderia até ser um fantasma. Antes de cair no sono dentro do avião imaginou como seria o toque de sua pele, a textura de sua língua e como eles se dariam bem pelados.

A distância criou uma necessidade de conversa diferenciada: agora que se falavam por outros meios, de certa forma tinham mais liberdade de fantasiar. Ficou claro que a conexão era compartilhada quando Maria enviou a primeira mensagem com resposta quase instantânea de João. Não era tão casual assim, mas também não era como se algo pudesse acontecer. A conversas foram se alongando e a tensão sexual do encontro físico foi substituída por inferências provocantes via texto. A paquera havia sido declarada. Maria sonhava constantemente com aquele João fantasia que caminhava ao seu lado e dividia o cigarro esperando o ônibus chegar. Mas agora ele havia se tornado o João que pensa nela quando gasta muito tempo no chuveiro, o João que já lhe disse que conhecia sua cara de tesão mesmo sem nunca a ter visto. Maria sentia sua nuca em chamas toda noite em que suas conversas se alongavam. Atrasava encontros com amigos de Nova York para gastar sacanagem com João no computador e não se arrependia. Foram “noites de travessiro”, ela chamava, porque esfregava o travesseiro com tanta força entre as pernas que algumas vezes conseguiu sentir João dentro dela. As vezes Maria fechava os olhos no meio da tarde ao receber uma mensagem erótica. Fechava os olhos para poder sentir. É claro que Nova York logo a consumiu, as aulas de dança eram puxadas e as viagens de metrô nem sempre pontuais. Outras pessoas começaram a aparecer e João ainda era casado. Se dizia infeliz, precisava de uma mudança. Queria outras coisas no momento e a aparição de Maria o fazia ter entendido essa necessidade, ele dizia. Era uma questão delicada. Maria sabia que não gostaria que seu marido (se assim o fosse) tivesse o tipo de conversa com outra pessoa, no nível que ela e João estavam tendo. Era despretensioso, mas apenas se você não tivesse um compromisso com outra pessoa. Ela entendia a angustia de João, mas estava tão longe… também não queria ser motivo de separação, ela sabia como doía. Havia passado por isso tão recentemente que as vezes pensava que se faziam anos. Esse encontro com João pareceu dilatar o tempo. 


João a enviou uma mensagem exatamente um mês depois de sua chegada em Nova York, dizendo que havia entrado em “processo de separação” com a esposa e que estaria ausente por uns dias. Maria tinha conhecido Jack no dia anterior e passado a noite em seu estúdio em Manhattan, por isso decidiu voltar ao Brooklyn somente na manhã seguinte, pegando o trem das 7:30a.m. Seu celular havia descarregado, e ela só viu a mensagem de João quando chegou em casa depois da aula de ballet.