Ela chegaria naquele domingo. Uma semana antes do domingo em que a passagem de João estava marcada. Ele soube disso no momento em que se aplicou para transferência, mas o fez assim mesmo. Não sabia se ela voltaria de fato, não se falavam há meses. Sabia que seu tempo estava expirando, ela teria que voltar de licença no começo do mês seguinte. Isso se decidisse voltar. Ele espiava o perfil dela mais para saber notícias, para ver fotos. Saber por onde ela andava, se as aulas de dança estavam boas, se a cidade estava boa. Ela parecia feliz, se adaptou bem, fez amigos. Não duvidava que ela se sentisse só, mas Maria parecia gostar da solidão. Era o que ela contava há um ano atrás, ao menos, poderia ter mudado durante esse ano inteiro. Mas aquela característica parecia perene: ela era sozinha. Talvez fosse isso que João gostasse nela, a sensação de que mesmo com ele ao lado, ela podia se manter em silêncio em seu próprio mundo. Contando suas próprias histórias a si mesma, sua solidão não era necessariamente um momento de calma. Ela pensava alto. Refletia. Não via a hora de ver de novo os pensamentos borbulhando daquela cabeça inquieta, daquela garota intrigante com sorriso apertado no canto da boca, cheia de malícias. Queria conhecê-las todas. Mas as memórias de Maria ficaram embaçadas com o passar dos meses. Ele pesquisou na internet qual o tempo mínimo para se estabelecer uma ligação que durasse tempo suficiente na memória. Queria saber, na verdade, quanto tempo uma semana em sua vida conseguiria perdurar. Mais de um ano? Em quanto tempo se esqueceria daquela semana? Não soube formular direito a pergunta e o google não o levou a lugar nenhum. Teve de bater uma punheta antes de dormir e acordar para aquela segunda-feira, desejando mais que tudo que ela estivesse sentada naquele banco em frente o prédio em que os dois trabalhavam.
Agradeceu aos deuses - ou a satã, quem sabe - quando a viu sentada no banco na manhã seguinte. Percebeu que o tempo tinha passado rápido. Aquele ano voou. Era quase um dejá-vu olha-lha naquele mesmo lugar. Distraída como era, não percebeu quando ele se aproximou. Gostava de jogar com aquela carta, brincar com a divagação dela. Mas quase não acreditou quando conseguiu fitá-la nos olhos. Era muita fantasia para uma pessoa só. Ela continuava familiar. Ia acender um cigarro quando percebeu sua presença e ficou parada um instante quando os olhos se encontraram. “Chegou”, ele pensou. Quis beijá-la loucamente. Na sua cabeça fantasiou os dois pelados na frente daquele prédio comercial, se agarrando e transando feito animais, mas se conteve em dizer que não esperava vê-la. Grande mentira. Deslavada, das piores. Queria vê-la, planejava vê-la, faria de tudo para vê-la, mas ela quebrou o silêncio com a história da barba e ele só conseguiu pensar naquilo para dizer. Manteve a pose na conversa e decidiram passear depois do trabalho, ele esperaria por ela no portão do outro lado. Dessa vez não tinha pressa, nem esposa, nem meias palavras. Agora podiam e deviam, por mais que não fosse durar muito, ele sabia. Mas queria saber o que poderia sair do que nunca saiu. Do que demorou um ano para acontecer - e olha que oportuno - ainda estava aceso como se nunca tivesse se apagado.
Depois do trabalho esperou por ela sentado no banco deles. Tinham tomado posse daquele pedaço. Mantiveram a descrição na entrada e na saída, mas assim que se afastaram do prédio em que trabalhavam começaram a se tocar sem parar. As conversas morreram naquele desespero de sentir logo o roçar das carnes. João ficou feliz por ter sido intuitivo e recíproco, instantâneo, natural, e de novo familiar. Um milhão de outras palavras que podiam descrever esses fenômenos que acontecem sem precedentes e se tornam enormes. João dançava uma música nos quadris de Maria. Ela cantava ao pé de seu ouvido qualquer verso inspirado em qualquer coisa, talvez fosse só a criatividade do momento, ou o divagar próprio dela. Ele gostava da prosa. Os beijos incessantes também eram reflexo dessa querência desenfreada. Os dois se agarraram no banco da quadra, no caminho da parada de ônibus, na viagem inteira até a casa de João. Tudo que ela dizia soava engraçado e um pouco melancólico, talvez pelo baseado do caminho ou pelo vinho no colchão. Eles riam de bobeira, partilhando aquele momento lindo. Era lindo sem querer. Se entregavam totalmente a cada silêncio e a cada olhar. Não era paixão, era outra coisa. Outro tipo de conexão, além terra, além alma, além coisas. Era o inexplicável acontecendo diante dos olhos e provando que foda-se. Ela estaria lá, nenhuma vida é tão curta. Algumas são, mas aquilo não acabaria. Se mudaria, é verdade. Tinha sido a vez dela, agora talvez fosse a sua.
Maria e sua cama se deram bem a semana toda. Queria poder desenha-la, até ameaçou uns rabiscos enquanto a observava cochilar nua, toda esparramada na quinta-feira. Ela era pequena, mas podia ocupar uma king size com facilidade, se deitava diagonalmente e estava sempre rolando, até quando dormia. As vezes João rolava com ela e ficavam minutos indo de um lado pro outro da cama rolando um por cima do outro. Não se sentia tão vivo como se sentia ao lado dela havia muito tempo. As interações do ano passado tinham sido superficiais em sua maioria, como para atender necessidades básicas. Não conseguiu se afeiçoar a ninguém depois que Joana foi embora e vez em quando pensava nela também. No fundo das esperanças, ainda aguardava o retorno de Maria. Queria ela de volta para resolver aquela pendência de doze meses e quando ela finalmente chegou, ele quase não podia acreditar. A história da transferência foi quase um ato de rebeldia, por mais que a oportunidade lhe fosse muito promissora. Não podia dizer não, e não disse, iria. Se pudesse levá-la com ele, se ela quisesse ir junto…
“Você não seria tão egoísta a ponto de pedir isso”, foi o que ela disse quase em tom de piada. Depois ainda gozou da idéia de os dois morarem juntos no Rio de Janeiro e virarem um casal qualquer, entediados com a conta de aluguel e com a chatice que a vida teria se tornado. Falava isso com um riso no canto da boca que denunciava seu sarcasmo. “Pelo menos estaríamos na praia”, ele tentou argumentar. Ela pareceu não ter ouvido. “E depois de aproximadamente um ano e meio - dois, se tivermos sorte - a gente já vai ter se ferido o suficiente para você se apaixonar pela primeira próxima garota que aparecer fumando um cigarro”. Maria montou a situação tão rápida e implacavelmente que quase não houve discussão, era um “não” muito categórico para ser ignorado. Seria assim, ela não iria. Parecia que eles nunca poderiam ter uma relação tradicional, nunca seria fácil. Deixou pra lá com o coração um pouco partido. Ele voltaria pra Brasília de quando em quando. E também não era muito longe, talvez ele conseguisse convencê-la de visitá-lo mais pra frente.
Ligou para Joana enquanto Maria dormia, para se despedir. Queria na verdade dar um alô para Téo e saber como andavam. Eles conseguiram manter uma amizade depois do término e João sempre gostou muito de seu ex-afilhado. Joana nunca soube da história com Maria - ela teve seu tempo para terminar o relacionamento por seus próprios motivos - e João também não amargurava. Eram parceiros acima de tudo, e ele acabava contando muitas de suas histórias juntos para Maria. Agora sentia que podia falar de Maria para Joana também. Ela já estava de pé naquele domingo quando atendeu o telefone. Tinha andado de bicicleta com Téo no eixão, os dois estavam bem. Perguntou a hora que ele iria para o aeroporto e até ofereceu uma carona por educação que João, por educação, agradeceu e negou. Quando ele falou que conheceu uma pessoa, ela pareceu se interessar mais pela conversa. Perguntou quem era, de onde, como e quando. Maria, do trabalho. A conheci fumando um cigarro na porta do prédio, caminhamos juntos depois. “Como assim, caminhamos?”, ele sabia que aquilo parecia estúpido. Mas era isso mesmo. “A gente anda por aí conversando e de repente viemos parar aqui em casa algumas vezes essa semana”. Joana pediu um segundo, Téo queria falar com ele. Ele conversou com o garoto, um pouco confuso da revelação que tinha feito. Teria falado demais? Quis saber das aulas de futebol e do colégio. Téo falou tudo com pressa e no final ensaiou um “Boa viagem, tio, juízo”. Joana retornou ao telefone e perguntou se era algo sério que estava tendo com Maria. Ele não soube dizer. Não era sério, era intenso. “Uuuuh”, Joana parecia conversar com suas amigas de colégio, levando tudo no tom da fofoca. Isso irritou um pouco João. Joana era a segunda mulher consecutiva que fazia piada quando ele tentava falar sério. Perguntou o que devia fazer. “Ah, poxa, você vai pro Rio. Ou você fica lá e volta ou ela vai pra lá e fica com você. Ou cada um fica num canto. Junto ou separado”. Ela havia falado absolutamente todas as alternativas possíveis. “Mas qual delas eu devo tentar?”, João já estava agoniado. “Qualquer uma. Não é só o que você escolhe. Tem que ser o que vocês dois escolherem juntos. A sua parte mais a parte dela. Que vai resultar em uma outra coisa, que não é nem inteiramente o que você quer, nem ela. É que nem um filho”. João não entendeu o que ela quis dizer e se despediu. O que um filho tinha a ver com o assunto ele não conseguiu compreender, e tentou esquecer dessa parte da conversa.
Não é como se ele não quisesse ser romântico, ou expressar tudo que queria dizer de fato. Mas algo naquilo parecia um pouco inadequado quando se tratava de Maria. Ela não parecia topar ser sua namorada da forma que ele esperava. Sabia que havia romance e envolvimento em todos aqueles encontros, por mais que parecessem casuais. Não é como se ela casualmente fosse parar em sua cama todos os dias daquela semana, tinha algo que movia aquele presença. Mas não saberia definir, não conseguiria falar sobre isso nos termos deles. Aquela velha de história de falar do geral aplicável a situação em que eles se encontravam, mas nunca a própria situação. Não usavam nomes ou se incluíam nessa gama de histórias, eles falavam deles sem se preocupar muito com a já adquirida relevância um do outro. Não era um assunto, nada que se discutisse. Já havia tentado tocar no ponto “nós dois”, mas foi logo rodeado por Maria e preferiu assim. Era como se o presente fosse tão marcante, que não haveria espaço para aquela conversa. O futuro era só depois. Depois que ele fosse embora, claramente. Depois que aquele beijo terminasse, depois que ele extraísse a última gota de suor que conseguisse daquele corpo moreno que se retorcia como uma felina em sua cama.
O Rio de Janeiro era muito barulhento. E mesmo distante da orla, o mar também era fonte inesgotável de sons. O centro calorento então, parecia rebater o barulho das conversas das pessoas na rua apinhada de gente. O ônibus estava lotado como de costume e João tentava se manter acordado naquele calor sufocante de meio dia. Sem querer pensou em Maria e em seu sumiço. Desaparecera no momento em que ele se despediu em frente ao salão de embarque. E nunca mais deu notícia. Tinha desativado a conta no facebook e nunca atendera as suas ligações. Tentou ligar de outros números (para saber se era pessoal) mas mesmo assim, nenhum sinal. Já havia cansado de pensar o que poderia ter causado esse sumiço de tantos meses, chegou a cogitar se ela havia morrido. A viu por toda cidade, em rostos e corpos diferentes, mas que se assemelhavam - a imagem de Maria foi ficando embaçada com o tempo.
Naquele mesmo dia, como na força do pensamento, João teve certeza que a viu. No seu bar habitual na Lapa, próximo ao prédio em que trabalhava e frequentava quase toda quinta e sexta-feira, lá estava Maria, sentada em uma mesa com duas outras garotas. Ele não duvidava que aquela era a real Maria entre todas as outras que tinha visto desde então, não importava quantas cervejas tivesse bebido. E de fato era. Não notara sua presença antes, esteve de costas para aquela mesa o tempo inteiro. Ela apareceu sorrateiramente. Os olhos encontraram de jeito que não dava para negar: eles se conheciam. Dessa vez ele foi pego de surpresa, e não teve muita reação. Ficou a observar Maria se levantar da mesa e vir na direção dele olhando em seus olhos.